Poema sobre o dia nacional da
consciência negra, o 20 de novembro.
(Marília
Machado)
Chega
de gritos de dor
e de tanto ranger os dentes.
Chega
de gemidos, de lamentos
e de tantos elos de correntes.
Chega
de baixar os olhos
diante da discriminação!
Agora
é hora do negro.
Hoje é o dia de ser feliz.
Tomemos
as rédeas da vida,
segurando-as firmes em nossas mãos!
A
exemplo de tantos heróis
que nosso povo gerou,
Sejamos
os agentes desta revolução!
Publicamos
aqui uma seleção de poemas
escritos pela camarada Marília Costa
Machado, falecida no dia 15 de
fevereiro de 2012, no decorrer de
vários anos. (Fotos: Vanguarda
Operária)
Quando sou poeta
(Marília
Machado)
Quando
sou poeta
pairo acima do bem e do mal.
Mas sou tão frágil quando sou
mortal...
Quando
sou poeta
fico indignada, revoltada!
Quando sou mortal sou lesada...
Quando
sou poeta
abomino as injustiças.
Denuncio.
Quando
sou mortal
vivo na escravidão.
Poeta,
vivo
Mortal, sobrevivo.
Mortal,
desfaleço.
Poeta, realizo.
Poesia retirada
do livro REFLEXÃO
VERDE AMARELA, editora Kroart, Rio
de Janeiro, 1999
Ditadura
Esta
frase foi colocada emum
outdoor na avenida principal de São
Gonçalo
Não
meditas nas duras desditas que me ditas?
Abolição dos
escravos?
Em maio de 1888 foi “abolida” a
escravidão pela famosa “Lei
Áurea”.
Ante
a generalização de
rebeliões de escravos e a
criação de quilombos, Brasil foi
o último país independente da
América a eliminar a escravatura que
data das origens do capitalismo. Porém,
os ex-escravos não receberam terras
para cultivar, e persiste até em nossos
dias o trabalho escravizado no Brasil.
(Marília Machado)
Sem
nenhuma garantia,
Sem emprego ou moradia,
Sem alfabetização.
Isto foi a abolição?
Nada
de reforma agrária.
Saúde, muito precária!
Só tinha valor o patrão.
Isto foi a abolição?
A
favela aconteceu.
O mendigo apareceu.
Criança sem proteção.
Isto foi abolição?
O
povo negro esquecido,
Empobrecido e sofrido
Com a discriminação.
Isto foi abolição?
Passados
mais
de cem anos
Vivemos ainda os danos
Daquela situação.
Isto foi abolição?
O
grande golpe da história
Ficou em nossa memória,
Na vida e no coração.
Isto
foi abolição?
Marília
(à esquerda) lê uma de suas
poesias num debate no sindicato de
trabalhadores da previdência e saúde do
estado de Rio de Janeiro (Sindsprev-RJ).
Prelúdio para Jamal
(Marília
Machado)
Você
é a luta de todos nós:
dos que já se foram
e dos que ainda virão.
A
essência da liberdade
buscando a libertação
É quem vive no Brasil
ou em qualquer outra nação.
A
dor de quem é escravo
num mundo de tantos senhores,
das vítimas de tantos horrores
no campo, cidade ou favela.
É
aquele que escreve a história
com força e convicção.
Um
herói sem fantasias
que não serve à
alienação,
a voz que não quer calar
diante de tanta opressão,
um
desejo de justiça,
um clamor do coração.
Você
é um grito na garganta
de cada negro que chora,
de cada humano marcado
pelas torturas do mal.
Você
é paz, às vezes guerra.
Você
é MUMIA ABU JAMAL
(poema publicado na edição
especial do boletim do Sepe-RJ, abril de 2008)
Haiti: Duzentos anos de
dor
(Marília Machado)
Maisde
duzentos anos
de dor,clamor,
desalento.
Mais de duzentos anos
de luta, horrore tormento.
Mas
também foram dois séculos
de vitória da resistência,
de superação da existência,
de força e soberania.
A
guerra mais implacável,
tão difícil de vencer,
é contra o preconceito
e a cruel burguesia,
que
vindo de todas as partes,
exercendo a tirania,
massacra, fere e oprime,
disfarçada de “missão”.
E
fingindo que quer paz
pune, do povo, a “ousadia”
de fazerrevolução.
Lá,a paz
se pinta de preto,
da cor de um povo lindo,
que luta e vai conseguir.
E
então,libertará
o belosorriso
preto
daquerida
infância preta
que vive no Haiti;
a
grande alegria preta,
da juventude preta,
que vive no Haiti;
afelicidade
preta,
daspretas
e pretos de garra
que vivem no Haiti.
Quero,
que logo aconteça
a nova revolução
reerguendo o Haiti,
pois um pedaço de mim
também sobreviveali.
(poema publicado no blog do Sepe-RJ, fevereiro
de 2010)
Privatiza, privatiza, privatiza
Este
poema foi colocado no caderno de tese do
Comitê de Luta Classista no Congresso do
Sepe em 2003, onde um grupo de
funcionárias e professoras do Ciep
Vital Brasil, onde Marília ensinava,
fez moção para que o Sepe
filiasse e lutasse pelos terceirizados(as).
O
texto faz referência alegórica a
uma série de
privatizações realizadas pelos
governos burgueses. Entre elas, em 1998 o
último governo de Fernando Henrique
Cardoso privatizou a ferrovia, a telefonia e a
companhia mineira Vale de Rio Doce. A
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN),
principal produtora do aço, foi
privatizada a partir de 1993.
(Marília
Machado)
O
trem me atropela
E eu não posso correr:
Privatiza, privatiza, privatiza.
Vende
a luz, vende a água.
O telefone, a escola:
Privatiza, privatiza, privatiza.
Vende
o aço, a saúde,
O minério, a consciência:
Privatiza, privatiza, privatiza.
Vende
a honra, vende a paz
Vende o povo, vende tudo.
Privatiza, privatiza, privatiza.
O
trem me atropela, mas não vou morrer.
Resisto na luta, vou sobreviver.
Marília (segunda da
direita) em uma palestra no Rio de Janeiro com
presença do sindicalista norte-
americano Jack Heyman (centro) logo do dia 1o.
de maio de 2008, quando os portuários do
sindicato
ILWU paralisaram todos os portos da Costa
Pacífica dos EUA contra a guerra do
Iraque e Afeganistão.
Tropeços
(Marília
Machado)
Percorrendo
as histórias do meu povo,
das mulheres estou a ouvir de novo
os tropeços para esta
construção.
Parece
incrível
que, após tanta batalha,
nem a lei satisfaz nossos anseios,
nem a arte segue a revolução.
Criança da rua
(Marília
Machado)
Criança
que vive na rua.
cheira cola, bate carteira,
criança
de pele escura,
sem escola nem bandeira,
criança
esperta,
que brinca com a vida,
anda
em bando,
entra no crime
e
morre bem cedo.
Um
dia, criança,
essa vida ainda muda
e
você se liberta do preconceito,
da tortura e do medo.
Creio, logo luto
(Marília
Machado)
Se
eu não acreditasse
que é preciso estar na luta, questionar,
me rebelar...
Se
eu não acreditasse
que é possível construir a utopia,
trocar o conforto por um sonho,
amar o diferente...
Ah!
Seria tão fácil se eu não
fosse crente!
Poderia
ir plantar batatas,
catar coquinhos,
ou, quem sabe,
puxar saco só um pouquinho
de quem quer me pisar...
Ser
uma negra de alma branca,
dizer amém ao patrão,
ser capacho, objeto de consumo
e, tranquilamente, me desrespeitar.
Crescimento
(Marília
Machado)
Antes,
eu olhava apenas
o que estava ao redor
e queria salvar o mundo.
Depois,
desviei
o olhar
e fiz uma longa viagem
nas profundezas de mim.
Visitei
os meus recantos,
vasculhei todos os cantos
que minh’alma permitiu.
Fiquei
muitas
vezes surpresa,
tristezas, as tive tantas!
Outras
tantas
vezes, sorri.
Agora
o momento é chegado
de estender o meu olhar
pelas paisagens da vida.
Aguçar
os meus sentidos,
assumir o meu partido
nos pleitos do coração.
Perceber
o grande enredo,
desvendar os meus segredos,
fazer a revolução.
Esta
poesia está no livro O Encanto das
Bruxas, em parceria com sua amiga
Carmen Lucia Oliveira Corrêa, editora
Litteris, RJ, 1995
Marília (à
esquerda) em 2007, no momento de um plebiscito
dentro do Sepe-RJ sobre a proposta de sair
da Central Única dos Trabalhadores e
ingressar à nova central Conlutas. O
Comitê de Luta Classista fez
campanha por permanecer dentro da CUT, a maior
central sindical do país, e lutar contra
o frente-
populismo que é caraterística
comum de todas as centrais.
Do
Ventre da Terra
[Em outubro de 2010, 33 mineiros
chilenos, após de permanecer mais de
dois meses enclausurados num canal
subterrâneo colapsado da mina, foram resgatados em meio
de propaganda nacionalista e
autojustificativa do governo direitista de
Sebastián Piñera.]
(Marília
Machado)
Ressurgiu
então
a vida,
apesar das traições,
da eterna luta de classes
e das discriminações!
Apesar
de uma jazida
que estava condenada,
apesar de um sistema
que o povo maltratava,
apesar das condições
que a mente apavorava.
Nas
asas da doce Fênix
ressurgiu a vida teimosa
dos trabalhadores chilenos
Do
ventre da terra mãe,
grávida de tanta esperança,
renasceu vitoriosa,
a vida que quase apagou.
Não
havia equipamento
para tal situação.
Esquema de salvamento,
ninguém pensou nisso não.
Mas
aconteceu o acidente
que obrigou de repente,
lançar mão do improviso:
Com
hino e bandeira ao vento,
parabéns e presidente
subindo de cotação,
o socorro foi promovido.
E
mais uma vez o que era
para ser bem discutido,
virou razão de ufanismo,
de muito patriotismo,
excesso de nacionalismo,
mantendo o trabalhador
eufórico e bem iludido.
Auto estima
(Marília
Machado)
Quero
ser porta-voz de uma raça
que é nobre, astuciosa e inteligente.
Quero
dizer ao mundo inteiro
que negro também faz bonito,
que dominamos todas as artes.
Quero
fazer o discurso dos fortes,
daqueles que resistiram,
que lutaram e não se entregaram.
Quero
falar que nossa coragem
construiu este país,
que nossos braços, literalmente,
embalaram esta nação,
que os seios de nossas mulheres
alimentaram este povo.
Quero
estar tão orgulhosa de ser negra,
a ponto de não me deixar vencer
pelas armas da opressão:
Racismo,
preconceito
e discriminação.
Criança da
rua
(Marília
Machado)
Criança
que vive na rua.
cheira cola, bate carteira,
criança
de pele escura,
sem escola nem bandeira,
criança
esperta,
que brinca com a vida,
anda
em bando,
entra no crime
e
morre bem cedo.
Um
dia, criança,
essa vida ainda muda
e
você se liberta do preconceito,
da tortura e do medo.
Educando
(Marília
Machado)
Profissionais
da
Educação,
Dizendo não ao patrão.
Ato
público inflamado,
Discursos revoltados
Com o quase estado de coma.
Zé
Brasil passa e fica admirado
Com a força dessa gente que não
cansa.
Em
seu peito massacrado,
Nasce uma nova esperança.
Estende
as mãos trêmulas,
Faz a cara mais bonita que consegue
E
pede àquela professora mais valente:
“Você me dá um diploma?”
Ela
move os lábios atônita
Mas só o silêncio responde.
Festa macabra
Comentário sobre o dia 19
de abril, O “Dia do índio”.
(Marília
Machado)
Pega
o índio!
Assa vivo!
Esfola
o índio,
Espancando sem parar!
Fuzila
o índio!
Coloca num saco com a prostituta
E extermina os dois!
Comemora
a hipocrisia e o desgoverno.
Afinal,
hoje
é o dia do índio.
Marília (portando faixa,
esquerda) num protesto do Sepe no Rio de Janeiro, 14
de agosto de 2009. À direita num
jantar com camaradas do CLC e da LQB.